segunda-feira, 30 de março de 2009

O HERDEIRO DE MEDUSA

“O amor é o sangue do sol dentro do sol. Algo dentro de qualquer coisa profunda.”
Uma casa na escuridão, José Luís Peixoto
À noite quando todos dormiam ouvi um piar de mocho: anunciou-me a tua queda. Cansaste-te de procurar o Amor, Anjo caído?
São três as ninfas que te seguram nessa imensidão escura que agora és. Do outro lado do rio subterrâneo que às vezes tenho dentro de mim é dia, os Anjos cantam: um chora. Apenas um. O Anjo que chora por ti. É um Anjo na Terra, Anjo de pedra – herdeiro de Medusa.
É de pedra o Anjo que não sente o teu toque, que não sibila o teu saber, que não enche o teu ser. E são de ouro as lágrimas do Anjo que chora – chora por não ser a pedra que te segura nas quedas. Chora por ser a pedra que te tirou a Vida, Anjo caído. Chora por ter nascido do sangue que o herói fez jorrar. Chora pela incapacidade de amar. Chora por herança: a infelicidade de mãe: incapaz de uma só vez o olhar.

E cada vez que o Anjo cai modifica-se a pergunta: deixa o Homem de perguntar: “Quem sou eu?” e passa a perguntar: “O que eu não sou?”.

quarta-feira, 25 de março de 2009

RETRATO


“Era como se a noite toda existisse e descesse sobre aquele corpo que era o centro do mundo.”
Uma casa na escuridão, José Luís Peixoto

Era um sábio: sabia viver. Vivia muito. Todos os seus gestos tinham Vida. Vivia mergulhado nas coisas simples. As coisas grandes da Vida guardava no olhar. Recebia todos os que com ele se cruzavam, de mãos abertas: partiu com o coração cheio de nomes. Não passamos de nomes, números na palma da mão, de alguém ou de ninguém: somos retratos. Somos imagens no jardim do outro.
O Tempo ensinara-o – a mim também – a apreciar um gesto do galo, uma pena de pássaro no chão, um lagar cheio de uvas e a dor das mãos sem autor, mãos vazias, de nomes ausentes.
Um dia gostava de ser como ele: modesto no trajar, humilde no ser, moderado no falar, bom ouvinte mas muito pecador. Dizia-me sempre que um grande Homem tem de ser muito pecador: só ao pecar será o Homem capaz de errar e o valor às coisas grandes da Vida dar.
Todo o Homem sábio é um pecador: poeta da dor, Anjo do Amor ou simples retrato guardado na palma da mão.

terça-feira, 24 de março de 2009

OS ESTRIBILHOS DO TEMPO: DIAS.

“O dia podia nascer, os pássaros podiam cantar, que, para mim, o tempo tinha parado num tempo de noite e de morte".
Uma casa na escuridão, José Luís Peixoto

Um dia o Tempo permitiu que te baloiçasses em mim de braços abertos: nasceu uma tela de cores imperfeitas. Desenhou o escritor – com emoção e sapiência- letras imaturas. Fui andarilho nas mãos do Tempo: vivi. Hoje, o que resta de mim são pedaços de um modo indicativo, no tempo pretérito imperfeito. E, soltam-se as asas da emoção; voam pássaros pelo infinito, todas as penas que caem no chão são estribilhos de um dia. De um só dia. Ou de alguns dias menores. Poucos. Raros.
Sou nas tuas mãos um estribilho, bordão imperfeito; palavra repetida. Somos palavras de um mesmo texto: incompleto. Somos estribilhos do Tempo: dias. E, a Estrige negra e opaca levou os dias maiores para o Estígio: foram sete as voltas e nós dentro delas, como uma espiral.

Ao longe ecos dos estribilhos do Tempo: resquícios dos sentidos esquecidos: primeira pessoa do plural.

segunda-feira, 23 de março de 2009

Galhos do Tempo: dias.

“Vestiram-no de púrpura e, tecendo uma coroa de espinhos, lha puseram na cabeça.” Marcos 15:17
Uma entrada: sem chave. Porta aberta: escancarada pelo Tempo. Porta colocada, pelas mãos do Homem, numa parede revestida pela Natureza: verdes muros, esperança. Escadas deformadas por mãos pouco hábeis. Escadas que os pés hão-de pisar: chão de uvas.
A companhia das folhas secas: intempéries dos Dias menos frutíferos. Gestos verdes e castanhos: Vida. Estágios, etapas, fases: Vida. Superfície escabrosa. Os dois lados: Vida e Morte. Sombra. Sol. Galhos do Tempo. Escadas de duas Rosas.

Coroa de Espinhos: Vida. Escadas: ceptro de Morte, libertação. Início. Galhos do Tempo: dias, Vida.

segunda-feira, 16 de março de 2009

A Voz: nas Vozes.

“Tudo é último. (…) Quando os dias se misturam todos num dia em que é todos os dias. (…) Guardem as lágrimas para um dia de mais alta nomeada.”
Nenhum Olhar, José Luís Peixoto

Nas tardes insepultas: dias; todos somos filhos de um grande Amor triste: um dia. Apenas um entre muitos. Apenas um grande Amor entre muitos dias: o dia; a diferença do Amar: a dois. Um em dois: união.
Em ti a pergunta: sem resposta.
A Resposta que vive em mim: em nós.
Somos. Somo-nos – algo sem tempo, sem dias, sem horas – entre a pergunta e a resposta.
Em mim a resposta: sem pergunta.
A Pergunta que vive em ti: és.
És. És: sempre – tu em mim – infinito Ser. És um grito – no tempo, no dia, na hora eterna: noite – entre a resposta e a pergunta.
Em nós a pergunta e a resposta: morte e vida.
A resposta que vive em mim e a pergunta que vive em ti caminham de mãos dadas, entre a Vida e a Morte. Porque tudo é último: não existem perguntas nem respostas. Existe uma voz: nas vozes.
A voz do nós: silêncio partilhado por um eu e tu: cúmplices da cegueira e do olhar.

domingo, 8 de março de 2009

A Anunciação da Morte: Fim dos dias – Noite.

“Disse: chega devagar, mas vem; aproxima-se e será um dia infinito, uma noite eterna, um instante parado que não será um instante; e os assuntos grandes serão menores…”
Nenhum Olhar, José Luís Peixoto

Esperam-te as cores da vida – infinitos tons na tez do Ser, tela do viver - para o teu dia: julgamento final.
Esse véu que todos dias envergaste já nada pode.
Aproxima-se, passos lentos, sem piedade: aquela que te vem ceifar o existir. Já sinto os Milhafres, afugentados – deste vale curto – e com medo: sinto-te Morte. Foi uma rápida visita: a tua. Anunciaste que voltarás, dentro de escassos dias, para mostrar que o negro tudo pode: medo, escuridão, vazio? A Morte exige preparação:

(Confessa-te: na voz do Padre.)
(Parte com um sorriso – não irás só -: na voz do Poeta.)
(Resigna-te aos desejos: despeja-te deles: na voz do Buda.)

Nem o Padre, nem o Buda nem o fingimento do Poeta – tentando ludibriar a morte – sabem que a morte é para ti um desejo: vida eterna – vida para além da vida. Só tu sabes as cores que a tua Alma tem e quem nela queres deixar entrar.
A Morte é um sopro de maresia: alivia as dores dos que nada temem. Daqueles: do tu ou dos muitos eu em ti - máscaras que só tu vês no espelho – moradores na tua Alma: pedintes, navegantes ou meros vagabundos de vidas errantes ou sôfregas que, apenas, desejam Paz.
Eis a Anunciação da Morte pelo Anjo negro: o que te roubará os dias. Prepara o teu Ser: escolhe os nomes que levarás nas mãos, sobe aos pícaros mais altos da Terra: mostra, em vida, a tua dor – partirás mais leve.
(Não te confesses.)
(Não leves sorrisos: solta lágrimas.)

(Não recuses desejos: deseja – sempre – o que mais ninguém ousa desejar.)
Não são vozes que te dirão o que hás-de ou não fazer. Sejas tu mesmo: descalço e com dor, no vale sombrio que te receberá: esquece os outros.
Esperam-te as cores da Vida – infinitos tons na tez do Ser, tela do viver: na Morte.

sexta-feira, 6 de março de 2009

BAILARINA MORTA: és.

“Debaixo da pele, envolvemos as memórias, as ideias, a esperança e o desencanto.” Antídoto, José Luís Peixoto

A Bailarina despiu-se para a primeira dança. Hoje senti a tua nudez: dançavas num livro. Estavas morta: ainda estás. Chora um Anjo a tua morte: descosem-se as linhas do arco- íris. Ágape sobrevoa agora os teus sentidos, os meus sentidos: os teus sentidos em mim. Dormes - no eterno viver – já tão cansada da dança ilusória dos sentimentos náufragos. Quem te pintou o Ser? Quem ousou desenhar-te? Quem se aventurou meter-te no meio dos livros – dançando, apenas, quando uma Alma os toca? Pobre: és pobre. Não danças quando queres. Nem quando o teu interior pede: és marioneta – falsa bailarina – nas mãos de quem deseja tocar nas páginas do que sentiste. As letras são passos de dança, sentidos. Mas só são sentidos os passos, da Bailarina, quando ela dança no seio dos livros: com o seio do seu sentir. Sempre que uma Alma toca a bailarina morta: ela dança, uma dança imortal. Debaixo da pele, nesse sarcófago dos teus sentidos, envolves as memórias de outras danças: o desencanto do não vivido, a ausência dolorosa e amarga do não sentido.
Foram danças de ilusão: as que dançaste em vida – junto de corações errantes.

quarta-feira, 4 de março de 2009

AS PALAVRAS


"Entre duas palavras, escolha sempre a mais simples. Entre duas palavras simples, escolha sempre a mais curta." Paul Valery

Nas palavras: há palavras – sem palavras.

As palavras, nas palavras: das palavras. As palavras sem palavras.
Há quem abra a boca e nos toque com os lábios: soltando palavras – fala. São lábios que convidam a falar: palavras.
Há quem use o carinho das mãos numa folha – à espera de cicio – acariciando a folha com a tinta ou o carvão: desenhando esculturas frágeis ou rudes – escrita.
Há quem nunca tenha pronunciado uma palavra: mudez – mas que as encerre e receba em si – dentro ou fora – como tesouros guardados num baú ou numa gaveta.
Há quem nunca tenha recebido uma palavra: nudez – pouca abertura de espírito, egoísmo ou ausência: corpos nus os que a palavra não chega – sem veste.
Há quem fale quando devia calar: há palavras mudas – ditas no pestanejar mudo de um olhar – e palavras que tocam os céus, quando se tornam gritos: ecos do Ser.
Há palavras comuns: sem privacidade e palavras com identidade própria: partilhadas, apenas, com o eu ou aqueles a quem o eu permite Ser – existir.
Há palavras que só nos pertencem a nós: são-nos bocados, pedaços da nossa identidade. Sublime identidade: a do dono de palavras – as que guardamos em nós: Alma.
A Alma com palavras é um chão de papel – guardado nas pálpebras dos sentidos – pronto a desvendar: com carvão ou tinta, o que a tua imaginação te doar. Ou será antes doer?

Se tivesses que escolher uma só palavra para te acompanhar na Morte – derradeira viagem – qual irias levar?

terça-feira, 3 de março de 2009

OLHAR


“Olhei-a nos olhos porque os olhos eram o sítio por onde ela me via. Tínhamos as mãos dadas, estávamos próximos, mas eram os olhos que deixavam que nos tocássemos”.
Cal, José Luís Peixoto

Já alguma vez olhaste – com olhos de ver para além do Sentir – para dentro de uma mulher, como quando olhas para dentro de ti e percebes o tamanho das palavras que ela te diz – mesmo sem o som da sua voz soltar?
Já alguma vez sentiste outro nome para o Amor, no olhar da mulher?
Já alguma vez sentiste outro nome para a Morte, no olhar da mulher?
Já alguma vez olhaste uma mulher e disseste – sem falar – “Gosto do que se vê e do que não se vê?”
Só podes encontrar o que vês e o que não vês – só tu podes encontrar – se ousares olhar.

Olhar: sempre além do infinitivo verbo – Ser. Olhar: acção de tocar o que as mãos não conseguem aceder.

segunda-feira, 2 de março de 2009

ROSTO

“Agora, és o rio e as margens e a nascente; és o dia, e a tarde dentro do dia, e o sol dentro da tarde; és o mundo todo por seres a tua pele.”
Morreste-me, José Luís Peixoto

Se tivesses procurado um rosto durante toda a tua vida e o tivesses encontrado. Encontraste-o. Se soubesses que depois de o encontrar, terias um só dia para continuar a viver – começar a morrer. Que farias com o rosto encontrado? Se te fosse dada a possibilidade de escolheres entre as mãos, o coração ou o rosto e tivesses de voltar atrás nos teus desejos, ainda escolherias - hoje - o rosto?
E se o Rosto te desiludisse? Se cada linha da pele tivesse sido a escrita da ilusão – nas mãos do criador? Partirias com as mãos cheias de tudo ou com o sabor do nada no coração?
Se o rosto que acabaste de encontrar - o teu objectivo encetado – corresponde aos teus ideais projectados na tela da tua existência, durante anos - tempos pretéritos no mais que presente – chega agora até ti: sentes que terás atingido, com êxito, o teu objectivo?
Sentes-te feliz - desconhecendo a felicidade - mas sabes que o teu fim está perto: sempre soubeste que só tinhas um dia de vida depois de teres alcançado esse desejo: vês viver – quando começas a morrer – a pergunta em ti: Será a Morte o ladrão da tua felicidade, o que vem roubar o tempo que possas passar com o teu objectivo? Ou permitir-te-á, a mesma – morte – a abertura de novas portas, ainda que desconhecidas?
E se no último minuto do fim da tua vida - começo da morte - encontrares um rosto perfeito: um rosto maior que o rosto que objectivaste toda a tua vida? Partirás feliz sem o teres sentido, mas por o teres visto – saberes que existe? Que viveu nos limites da Vida e da Morte?

AS NOITES NOS DIAS

“Em cada despedida existe a imagem da morte.”
George Eliot

A Noite não é - para todos - igual.
Há Sonhos - por cumprir - na noite de um olhar: morte.
Há, apenas e só apenas, realidade – cruel - no dia de todos os gestos: vida.

Pedaço de vida: nunca há vida no todo.
Porque nunca o dia casou com a noite: mero cruzamento. Ponto no meio.
Anoitece sempre que um Anjo chora.

Um Anjo na Terra abandonado à sua sorte: separou-o do Amor, a morte.
Demora a chegar o dia sempre que um ente parte desta vida: saudade.
Quantos dias demoram a cicatrizar a ferida que sangra por dentro: dor da ausência de quem parte?
São noites – a ausência.
São dias – o vazio.
São escuras as feridas, mesmo as que vivem nos pedaços da vida: noite.
A noite é um pedaço de vida: pequeno sopro, vazio, imensa escuridão.
A noite é morte.
A vida é ferida.

Cada vez que alguém parte, vai consigo um bocado do Ser de quem fica.
Morre-se aos poucos: vendo cada dia passar e cada noite por findar.
São noites os dias que encontro em mim.